Caminho de morte ou caminho de vida?
O luto selvagem de Cheryl Strayed
Fabiane Secches, Psicanalista
07 de Julho de 2017
Uma bela e silenciosa paisagem ocupa a tela, remetendo a um clima de natureza desabitada. Essa suposta paz, no entanto, é perturbada pelo som de uma respiração ofegante, que poderia ser de prazer ou de dor.
A ambivalência dessa abertura nos dá uma pista do filme a que vamos assistir: Livre conta a história da escritora americana Cheryl Strayed (interpretada por Reese Witherspoon), que percorreu a Pacific Coast Trail, trilha que atravessa a costa oeste dos Estados Unidos. Depois de perder a mãe de maneira repentina pouco após o diagnóstico de um agressivo câncer, Cheryl viu sua vida ruir. Enquanto vivia um complicado processo de luto, destruía também seu casamento e colocava a si mesma em risco, usando drogas e se apoiando no sexo com desconhecidos como única manifestação de vida.
O filme foi inspirado em um livro autobiográfico homônimo. Em ambos, acompanhamos a trajetória de Cheryl por obstáculos que parecem intransponíveis: o deserto, a neve, a sede, a fome e, principalmente, os recantos mais obscuros de sua mente. Fragmentos de memórias estarão ao seu lado por todo o percurso. São mais de 1.700 km de caminhada, uma longa jornada por diferentes geografias, cada uma exigindo de Cheryl habilidades diferentes. Durante três meses, período em que fica sozinha na maior parte do tempo, tem que se haver consigo, com suas feridas mais profundas. A enorme mochila nas costas sequer faz sombra ao peso interior que carrega.
Reese Witherspoon interpreta Cheryl Strayed
Filme Wild (Livre) de 2014
Apesar de todos os clichês sobre superação que permeiam a narrativa, a boa surpresa é que não se trata da natureza ensinando lições à protagonista. É com muita raiva e hostilidade pela vida e por si mesma que Cheryl precisará lidar. No lugar do imaginário comum, onde a sabedoria viria da simplicidade do mundo selvagem, tem que se confrontar com o que há de mais selvagem em si. A jornada trilha adentro não é de serenidade e autoconhecimento; é, antes, uma jornada de ira.
Há muita energia circulando que não encontra saída, e não encontraria mesmo no suor e nas feridas causadas pela empreitada. Não encontraria mesmo nas unhas que vão caindo sanguinolentas pelo caminho. Seu corpo é pequeno para tantos sentimentos efervescentes — assim como a bota apertada, que comprou um número menor porque não tinha experiência alguma para enfrentar o que viria.
Mas algo nesse processo sinaliza a Cheryl novas possibilidades de sofrimento. Se ela precisava sofrer, a trilha na costa do Pacífico lhe prestou um bom serviço. Essa criatividade recém descoberta que permite que a dor contida encontre novas formas de ligação e organização. Uma porta que se abre e permite que a vida não seja apenas repetição.
Para a psicanálise, o luto é mais do que um estado de pesar e sofrimento. Em Luto e Melancolia (1915), Freud o conceitua como um trabalho psíquico que busca reordenar a libido (termo que utiliza como sinônimo de energia afetiva) antes investida no objeto perdido:
“Em que consiste, portanto, o trabalho que o luto realiza? Não me parece forçado apresentá-lo da forma que se segue. O teste da realidade revelou que o objeto amado não existe mais, passando a exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto. (…) Normalmente, prevalece o respeito pela realidade, ainda que suas ordens não possam ser obedecidas de imediato. São executadas pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e de energia catexial, prolongando-se psiquicamente, nesse meio tempo, a existência do objeto perdido. Cada uma das lembranças e expectativas isoladas através das quais a libido está vinculada ao objeto é evocada e hipercatexizada, e o desligamento da libido se realiza em relação a cada uma delas. Por que essa transigência, pela qual o domínio da realidade se faz fragmentariamente, deve ser tão extraordinariamente penosa, de forma alguma é coisa fácil de explicar em termos de economia. É notável que esse penoso desprazer seja aceito por nós como algo natural. Contudo, o fato é que, quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido.”
De outro lado, o luto também é, segundo Lacan, um trabalho de reordenamento da posição que o próprio sujeito ocupava em relação àquilo que foi perdido. Ou seja: se antes Cheryl amava a mãe e se sentia amada como filha, agora está órfã de ambas posições. Não é apenas o seu amor pela mãe que vaga sem objeto vivo, mas também o seu desejo de ser amada (da forma que foi amada pela mãe), agora interditado pela morte que as separou.
por Cheryl Strayed
Cheryl se dispõe à aventura quase suicida quando seu casamento também acaba e um novo luto é acrescentado ao anterior. Caminho de morte ou caminho de vida?
Através dessa jornada extrema, tão literal quanto simbólica, consegue ligar seu afeto a novos objetos, principalmente a si mesma. No final, ao terminar a trilha, pouco mudou do lado de fora: na ocasião, Cheryl não tinha emprego, família ou dinheiro. Sabemos que hoje é uma escritora bem sucedida, que essa jornada se transformou em livro, que o livro se transformou em filme, mas Livre não diz respeito às conquistas que vieram depois, diz respeito ao caminho.
Quando se sente capaz de acomodar sua desordem e para de tentar justificar ou odiar suas ações do passado, cogita duas hipóteses supostamente paradoxais, mas que não se excluem: “E se eu nunca puder me redimir? E se eu já estiver redimida?”. Então conclui: “How wild it was, to let it be” (algo como: “Que selvagem foi isso: me permitir”).
* Texto originalmente publicado na edição 21 da revista aLagarta.