Perversão social na segregação do idoso
Dalvanira Lima, Psicanalista
05 de janeiro de 2023
O envelhecimento é considerado um tema chave para o mundo contemporâneo. Desde o campo da cultura até os âmbitos político e jurídico, o aumento da expectativa de vida nos tem chamado a confrontar uma série de desafios acerca do lugar do idoso na sociedade, bem como a reconhecer uma espécie de ressentimento em relação a este grupo social.
Nas discussões em torno da reforma da previdência de 2019, dentre suas justificativas, nada teve mais ênfase do que o aumento da expectativa de vida do brasileiro. Viver mais se tornou efeito colateral daquilo que deveria ser uma fruição do progresso do conhecimento humano, notadamente no campo da medicina.
Em consonância com esta perspectiva, no início da pandemia, a maior incidência da Covid-19 entre idosos soou como justificativa para alguns que preferiram negar ou omitir-se diante da gravidade da situação. Afinal, a letalidade é maior dentre aqueles que, supostamente, já teriam vivido o bastante.
Seguindo essa lógica, o médico Nelson Teich, antes de ocupar o cargo de ministro da saúde no governo Bolsonaro, declarou num congresso que, diante da escassez de recursos, privilegiaria a vida de um adolescente a de um idoso.
Recentemente, me causou perplexidade o comentário de um jovem no Facebook para justificar a expulsão dos aposentados de seu sindicato, em que ele dizia: “Isso perdurará enquanto mantivermos amarrado em nosso pé esse imenso peso morto que são os aposentados. Graças a eles morreremos afogados. Ou fazemos algo ou é isso”.
Em “O mal-estar na civilização”, Freud (2010) apresenta, dentre as três maiores causas do sofrimento humano, a condição do corpo fadado ao declínio e à dissolução. Isso pode nos dar uma dimensão do desafio que é lidar com o envelhecimento e, por conseguinte, a finitude. Não somente para quem envelhece, mas também para aquele que, mesmo jovem, tem diante de si esta inexorável expectativa.
A condição do idoso na sociedade contemporânea nos lembra da “obsolescência programada” proposta por Bernard London em um panfleto de 1932, conforme artigo de Padilha e Bonifácio. Nele, as autoras traçam um panorama histórico desse conceito desde o momento em que a indústria percebeu que, para manter seu ciclo de consumo, seria necessário dar aos produtos uma durabilidade limitada, ou seja, eles deveriam tornar-se ultrapassados ou indesejados com a maior rapidez possível.
Vários autores, como Mészaros (1989) e Bauman (2008), já nos alertavam sobre a sociedade descartável em que vivemos e na qual não interessa a produção de bens que durem.
São diversas as obsolescências a que o sistema nos condena e, entre elas, está a da “desejabilidade” que implica fazer com que o produto se torne entediante para o seu consumidor. Ser idoso, dessa maneira, passa a ser algo desgastado, não desejável, em uma sociedade que se renova, que comprime o tempo e faz da velocidade a sua marca.
As formulações acerca da gestão da vida e da morte podem jogar luz sobre as possíveis relações entre a obsolescência programada de objetos e de pessoas. Michel Foucault (2015) descreve seu conceito de biopoder como uma mudança do momento histórico de prevalência do “poder soberano”, um poder que poderia tirar a vida ou deixar viver, para o momento em que o poder pode promover a vida ou desautorizá-la.
Já Mbembe (2018) vai além e, ao referir-se ao poder social e político, constrói o conceito de “necropolítica” no qual algumas pessoas podem viver e outras devem morrer.
Dessa maneira, percebemos que o conceito de “obsolescência programada” não é novo e aplica-se hoje aos mais idosos a partir da negação de políticas públicas voltadas a eles, e, ao contrário, na implantação de medidas como o congelamento do salário mínimo, e aumento desproporcional dos planos de saúde para quem completa 59 anos.
A descartabilidade dos idosos se revela até mesmo na impaciência dos motoristas de ônibus que devem esperar para que o passageiro mais velho possa descer do veículo mais lentamente. O mesmo se verifica no desrespeito às filas destinadas aos idosos ou no uso indevido das vagas exclusivas dos estacionamentos.
Afinal, por que identificamos tanto no discurso de Teich como no post do rapaz, que quer expulsar aposentados de seu sindicato, e na impaciência do motorista diante dos claudicantes idosos, um sintoma da chamada obsolescência planejada?
Penso que o conceito de instrumentalidade do qual fala Calligaris (1991) possa nos dar uma pista. Segundo ele, em nome da paixão humana por se livrar do sofrimento neurótico banal, aliena-se a própria subjetividade entregando-se como instrumento. Em outras palavras, para não sustentar o saber impossível do que lhe falta, o neurótico sucumbe a um saber suposto – que Calligaris chama de saída perversa da neurose.
Então, nas situações a que me referi acima, digamos que haja um saber compartilhado do que é obsoleto e por isso, descartável, seja um eletrodoméstico ou um humano e, mais ainda, de que somente assim haverá lugar para um “novo”.
Creio que esteja aí um reflexo da exclusão social, destino daqueles que venham representar empecilho a esse saber suposto.
“Talvez já estejamos numa transformação do sintoma social dominante – que para Freud é um sintoma social neurótico – num sintoma social perverso, um sintoma no qual o saber paterno não é mais um saber suposto, mas é culturalmente um saber sabido e compartilhado.” (CALLIGARIS, 1991, p.117).
Texto adaptado do trabalho de conclusão do Curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea – Instituto Sedes Sapientiae em 2020.
Comentários