Sobre minha filha
Livro fala dos conflitos de uma mãe
Dalvanira Lima, Psicanalista
09 de agosto de 2023
Logo no título, “Sobre minha filha”, romance da escritora coreana Kim Hye-jin, remete-nos a uma premissa da psicanálise de que os analistas comumente estão advertidos: quando o analisante fala do outro, diz mais sobre si.
No caso do livro, é sobre a mãe na figura de narradora que vamos conhecendo os conflitos de uma mulher de sessenta e dois anos diante das transformações de seu tempo.
Isso se reflete na frustação de suas expectativas em relação ao futuro da filha, Green, para quem esperava estabilidade financeira, garantida pela formação universitária e uma família nos moldes tradicionais. Nenhuma coisa e nem outra acontecem, Green é lésbica e dá aulas em várias universidades como temporária com uma remuneração que em dado momento é insuficiente para arcar com o aluguel do apartamento em que morava com Rain, sua companheira. A mãe, mesmo contrariada, se vê obrigada a aceitar que ambas venham morar com ela.
Com a suposta impossibilidade do almejado futuro para a filha vem também a de um envelhecimento tranquilo para si. Seu trabalho como cuidadora numa clínica para idosos a coloca frente ao tratamento desumano destinado a essas pessoas.
Foto: Shawnanggg na Unsplash
“Percebo que o melhor da minha vida se foi. Esse local onde me encontro, esse tempo que vivo e essas coisas que vejo – tudo isso me lembra os bons momentos que nunca mais voltarão.”
Por meio da relação mãe – filha, Kim Hye-Jin nos coloca diante da abrangência de temas contemporâneos como envelhecimento, precariedade do mundo do trabalho e diversidade sexual, de tal forma que surpreende o quanto estamos vivendo um desbotamento das particularidades socioculturais de países ou regiões. Não fossem a denominação de alguns pratos da culinária coreana e dos nomes de alguns personagens, o cenário onde se passa a história poderia ser qualquer centro urbano do mundo. Vale dizer que mesmo para a nomeação dos personagens, a autora escolhe nomes coreanos para os mais velhos, enquanto para a nova geração, a filha e sua companheira, nomes em inglês, Green e Rain.
Tendo essas questões como pano de fundo o que sobressaem são as contradições vivenciadas pela mãe. Ao mesmo tempo em que se empenha em mitigar os maus tratos e o descaso sofridos pela idosa que está aos seus cuidados na inescrupulosa casa de repouso, destrata Rain, que considera culpada pela homossexualidade de Green. Surpreende-se, inclusive, ao se perceber identificada aos agressores da filha num ato contra homossexuais.
Mais do que a resolução desses dilemas, o livro aponta para uma implicação da personagem nas questões que a afetam sem perder de vista os determinantes culturais de sua formação. Entre a alienação absoluta ao passado e a impotência diante da incerteza do futuro, ela opta pela potência no fazer o presente.
Kim Hye-jin. Sobre minha filha. Tradução: Hyo Jeong Sung. Editora Fósforo, 2022.
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