Revolta: a babá
Os empregos ditos domésticos estão entre aqueles em que a vigilância pode se estabelecer com mais intensidade. O controle meticuloso e exaustivo visa à utilidade e à docilidade dos corpos. O poder disciplinar, como propõe Foucault (2014, pag. 138), se empenha em tornar o corpo “mais obediente ao torná-lo mais útil”, menos resistente. A doméstica está diante dos olhos, seu serviço é constantemente vigiado, seu campo de atuação é delimitado pelo espaço, mas quase nunca pelo tempo, sempre em aberto para que seus serviços possam ser reclamados a qualquer momento. A visibilidade facilita o julgamento e normaliza as ações domésticas.
A utilização de termos eufemísticos como “secretária do lar” não diminuem o estigma que pesa sobre essa profissão sempre sujeita ao olhar e ao julgamento do sistema capitalista que também se utiliza de expressões como “livre-empresa”, “empresa privada” para disfarçar aquilo que é na realidade: um sistema opressor que busca o lucro de forma incessante e, nessa busca, vilipendia corações e mentes em busca do lucro.
No Brasil, as empregadas domésticas são herdeiras diretas do modo de produção escravista. Quando da abolição, a mão de obra foi substituída pela branca, imigrante. Aos negros restou o trabalho que ninguém queria fazer, o trabalho maldito. Expulsos das áreas centrais das cidades foram morar nos locais de difícil acesso, nas periferias, nos cortiços.
Os apartamentos mais antigos, aqueles com “dependência de empregada”, reservavam esse dormitório ao lado da “área de serviço”, normalmente habitações diminutas, com banheiro igualmente diminuto e exclusivo para que sua utilizadora soubesse com clareza qual era o seu lugar: “da cozinha para fora”.
A empregada doméstica também representa o trabalho considerado “de mulher além de invocar o imaginário da servidão e submissão, características da escravidão” (J. C. Teixeira, 2014, pos. 2596 no Kindle). Comumente considerada como sendo “quase que da família”, à empregada é negado o acesso aos banheiros das casas, ao sofá da sala entre outras privações.
Os bons patrões oferecem roupas, calçados, bolsas às empregadas, quase sempre usados. Ao irem viajar, trazem para a empregada consideradíssima, um pequena lembrança como um chaveiro onde sê “estive em tal lugar e me lembrei de você”. Máquinas de lavar quebradas, geladeiras à beira do esgotamento, televisões quase no fim da vida útil, sempre encontram espaço na casa da empregada, acostumada a conviver com os restos.
Ii-Fu Tuan (1983) nos ensina que o lugar se constrói como espaço de identidade. Em uma casa, colocamos cortinas, quadros, recordações na estante. Esses elementos vão configurando nossa relação com o espaço que se transforma em lugar, onde nos reconhecemos. A empregada não dispõe desse espaço na casa. Apesar de passar boa parte de seu dia na casa dos patrões, essa casa lhe é estranha, nunca será o seu lugar.
Ainda hoje encontrarmos famílias que vão buscar jovens no interior para que trabalhem como domésticas. Acenam com a possibilidade de estudos e uma vida integrada à família, coisa que nunca acontece. A essas garotas, restará o trabalho extenuante, a escola noturna e os bens descartados dos patrões.
O trabalho doméstico possui semelhanças pelo mundo. Filmes como Histórias cruzadas, de 2012, com direção de Tate Taylor, é um exemplo. Outro é o livro de Slimani, Canção de Ninar que aborda temas como preconceito social, o papel da mulher na sociedade e relações de poder. Baseado em uma história real, conta o período de trabalho de uma babá na casa de uma família francesa com duas crianças.
A mãe das crianças, entediada com sua vida burguesa, resolve trabalhar como advogada. Seu marido resiste. Argumenta que ela ganharia tanto quanto seriam as despesas com a babá. Ela insiste e terminam por contratar Louise que vem com muitas referências.
Dotada de iniciativa, a babá logo conquista seus patrões e as crianças. Não demora para que Myrian, a patroa, sinta que Louise lhe é indispensável.
Louise mora na periferia da cidade. Seu apartamento é pobre, com aparelhos quebrados, cheia de dívidas, aluguel atrasado e com caixas de pertences fechadas espalhadas pelos exíguos cômodos. Seu banheiro chega a entupir e ela não consegue mais usar o chuveiro sendo obrigada a tomar o banho de “canequinha”. Em nenhuma circunstância, aquela casa se configura um lugar, um território onde Louise se reconheça e que assuma como seu. Para ela, a casa é um local de passagem. Sonha com a casa de seus patrões e vai fazendo dela o seu lugar imaginário.
Myrian é atenta. Quando volta com compras, tenta escondê-las para que Louise não se sinta humilhada. Esconde as notas de compras para que a babá não veja com clareza a distância que as separa.
Louise tem uma filha que não a respeita nem a visita. Na prática, é sozinha no mundo e se agarra à vida da família de Myrian procurando fazer dela a sua própria. Os filhos que lhe foram terceirizados passam a ser centrais para sua existência.
Nas férias, a dependência do casal faz com que levem Louise junto em viagem às ilhas gregas. O marido procura agradá-la e ela se sente desejada. Tal sensação passa rapidamente diante da postura distante e ela se ressente. Pensa que poderia ser, de fato, um membro da família.
No futuro, quando começar um relacionamento amoroso, Louise pensará em voltar às ilhas para ser servida, nunca mais servir. Ao pensar em sua vida retrospectivamente, lembrar-se-á que nunca foi servida, que esteve sempre a serviço de alguém, e que viu sua vida passar enquanto seus patrões a aproveitavam.
A existência de Louise é baseada no atendimento ao casal com seus filhos, mas essa relação possui suas tensões. Louise não aceita que a patroa lhe dê certas ordens. No começo, quando a babá chegou, Myrian estranhou que ela fizesse as crianças consumirem todos os produtos oferecidos, até o fim, chegando mesmo a “lamber a tampa do iogurte”. Se a princípio considerou essa postura pedagógica para seus filhos, a seguir passou a considerá-la exótica e desprovida de propósitos. A irritação era mútua. A babá não arredava o pé de seus valores enquanto Myrian ora se achava mesquinha, ora achava que a babá possuía problemas insuperáveis. Em um dos momentos mais tensos, a patroa joga no lixo o resto de um frango que Louise havia guardado na geladeira. Myrian sabia que a babá não gostava de desperdiçar nada, mas aquele frango havia passado do ponto faz tempo, de acordo com o julgamento da patroa. Ao final do dia de trabalho, quando Myrian entra na casa encontra sobre a mesa de jantar a carcaça do frango cirurgicamente limpa. Imagina que a babá tomou essa atitude para afrontá-la e pensa em demiti-la. Durante a noite, porém, considera que a babá vive em meio a carências múltiplas e que talvez ela, Myrian, esteja sendo injusta com a Louise.
Momentos como esse fazem da relação domiciliar palco perfeito e exemplar da luta de classes. As distâncias são instransponíveis e o jogo de poder está presente na opressão de um lado e na submissão do outro. Submissão que provoca ressentimentos, uma vez que as atitudes de Louise demonstram que as relações sociais de produção determinaram sua condição de inferioridade social, inferioridade com a qual ela reage afrontando a patroa e até mesmo sendo cruel com as crianças em determinadas situações. A babá nutre um ódio secreto pelas pelos filhos de Myrian, os quais ela diz amar, projetando nelas sua revolta pela sua condição imposta pelo injusto sistema capitalista.
Louise vai construindo aos poucos uma identidade para a patroa, uma identidade que passa pela condição de perdulária, insolente e opressora. Aos poucos vai construindo uma teia de ódio que clama por vingança física e social.
O marido de Myrian faz o alerta burguês: “ela é nossa empregada, não é nossa amiga”. Alerta, no entanto, que se perde diante da necessidade da presença daquela serviçal que se ocupa dos seus filhos.
Louise se vê sem saída quando percebe que as crianças estão crescendo e que, em breve, ela não será mais necessária. Ora, foi nessa casa que ela construiu sua identidade, nessa casa ela se sentia necessária, mesmo diante das contradições de sua condição de empregada.
Sugere a Myrian que tenha outro filho. Vislumbra aí a possibilidade de se tornar imprescindível ao casal. Comporta-se como uma investigadora observando se a menstruação da patroa acontece. Indaga a Myrian sobre a gravidez e esta responde que essa situação nem lhe passa pela cabeça. A babá se sente traída. Sente que seus serviços poderão ser descartados a qualquer momento. Ela olha para si e não vê nada. Sente sua identidade destruída e torna-se ainda mais ressentida. Um ressentimento que vai crescendo. Finalmente, ela mira naqueles que seriam o objeto de sua desgraça por estarem crescendo: as crianças. As mata como a dizer para Myrian que seria ela, Louise quem determinaria o momento de ir embora.
Conclusões
A saúde mental no trabalho, no sistema capitalista, é um projeto difícil de ser efetivado. Vive-se sob tensão, sob metas quase impossíveis de serem alcançadas. Acena-se com a meritocracia como exemplo de justiça para aqueles que perseguem seus objetivos. Essa meritocracia, no entanto, serve apenas para legitimar o poder de uns sobre os outros. Alguns poucos ascenderão profissionalmente enquanto a maioria permanecerá no limbo.
Por que uma parte significativa dos trabalhadores aceitam condições de trabalho que muitas vezes são humilhantes e degradantes? Por que servem aos patrões e não resistem à tirania do capital? La Boétie (2016) alerta que, defender a liberdade não é uma tarefa fácil, e só os mais insubordinados se lançam nessa jornada. Os trabalhadores não se dão conta que sua miséria passa pela aceitação como normal dessa condição. Acostumam-se com o cotidiano de suas vidas infelizes.
Em sua alienação, não percebem que, ao se esquecer da liberdade, se tornam submissos e sem a memória daquilo que se perdeu. A servidão voluntária passa a ser um hábito ostentado com orgulho por aqueles que querem servir com covardia aos senhores. Curiosamente, os trabalhadores, quando não emancipados de sua alienação, desconfiam de quem os ama e confiam em que os engana.
Os trabalhadores submissos temem, com base apenas em relatos, aqueles que, talvez, nunca tenham visto. Segundo La Boétie (2016), “é sempre assim: o povo inepto encarrega-se ele próprio de inventar mentiras nas quais, depois, é o primeiro a acreditar” (pag. 57).
Não raras vezes, a religião é utilizada como fonte de alienação. O capital usurpa os poderes divinos para continuar a praticar suas perversões. A elite dominante não se satisfaz apenas com a submissão, quer a adoração, não aceita que os mais pobres possam ascender socialmente. Querem que vivam na absoluta ignorância para melhor servi-los.
Os burgueses sabem aglutinar em torno de si os mais corruptos, avarentos e pelegos adesistas que anseiam por usufruir do butim resultante do trabalho dos explorados. Estes suplicam benefícios e favores renunciando sua condição de sujeito para alegrar ao patrão. No fundo, sabem que nada alcançariam por mérito próprio apesar de serem os primeiros a incentivar a “meritocracia”. Vivem num mundo de temor uns dos outros e são guiados pelo código do crime do qual são cúmplices.
A frustração, o ressentimento por aquilo que foi prometido e nunca cumprido, alimenta o ódio contra si e contra o outro. Valores supostamente humanos são deixados de lado em nome da própria sobrevivência. É a corrosão do caráter de que nos fala Sennett (1994, pos. 74 no Kindle). De acordo com o autor, “caráter são os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem”.
A sociedade do desempenho de que nos fala Han (2017) é dominada pelo verbo poder que impõe sua própria produtividade. O trabalhador é direcionado a ser um empreendedor de si mesmo, explorado ele mesmo por decisão pessoal.
A autoexploração é muito mais eficiente do que a exploração alheia, pois caminha de mãos dadas com sentimento de liberdade. É possível, assim, haver exploração mesmo sem dominação. (pag. 22)
O “tu podes” exerce maior coerção sobre o trabalhador do que o “tu deves”. Impõe-se a culpa diretamente ao trabalhador por não ter alcançado as metas propostas. A sensação de fracasso leva ao adoecimento, à insolvência psíquica que significa a impossibilidade de liquidar o que se deve: o compromisso com o patrão, com os objetivos traçados. O capital destrói o amor próprio do trabalhador e se preocupa apenas em consumi-lo, ainda que o trabalhador pense que ele próprio seja o consumidor.
A falta de reconhecimento pela dedicação é um dos elementos da relação capital x trabalho. A maioria dos trabalhadores não terá reconhecimento algum ao longo de toda sua trajetória profissional. Eles buscarão mecanismos de resistência e sobrevivência. Levar para casa um clipe, uma caneta esferográfica barata, jogar papel higiênico no vaso para entupir o encanamento, podem ser formas simples de demonstrar insubmissão. O poder, no entanto, está sempre alerta e a procura da domesticação dos corpos para a produção. O sistema procura suprir as angústias e os desejos com promoções, com ofertas de ideologias como a “missão de empresa”, o “time que joga junto”. O time que joga junto, de fato, age como os operários da gráfica francesa. Insubordina-se contra a opressão de seus patrões. A angústia, quando sufoca, pode levar ao surto psicótico de quem grita pela própria sobrevivência como fez a babá.
Os gráficos transformaram a ira contra seus patrões em um grande evento festivo, um ritual em que seus algozes eram justiçados em meio a bebidas e gargalhadas. Resistiram à opressão e fizeram um pequeno ensaio das grandes revoltas populares que viriam a seguir.
As irmãs Papin mostraram que os tempos estavam mudando. Quando Léa adverte que não vai mais aceitar as humilhações de classe se estabelece uma ruptura comportamental de submissão histórica dos trabalhadores domésticos. Ali se verifica a verdadeira quebra da energia que levaria ao colapso e ao desenlace trágico.
Finalmente, a babá sinaliza que, por mais artifícios que o sistema engendre, com suas premiações, negociações e acenos de crescimento profissional, tudo está sempre incompleto, o trabalhador está sempre endividado e preso às engrenagens que suga a sua existência. Citado por Le Guillant (2006), Raymond de Ryckere em “A Criada Criminosa” assinala: “A criada vinga-se dos patrões ou dos filhos dos patrões da forma mais cruel e, pelo motivo mais fútil, às vezes, por uma simples repreensão” (pag.312).
Os casos aqui relatados buscaram exemplificar as complexas relações entre patrões e empregados no sistema capitalista. Um e outro distanciados por séculos, mas próximos em suas contradições como a dizer a todo o sistema que o pulso ainda pulsa.
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