Pelo olhar de uma criança
Elaboração do luto
Dalvanira Lima, Psicanalista
27 de dezembro de 2022
O filme Verão 1993 (Espanha, 2017) é uma daquelas preciosidades que atribuo à sorte o prazer de tê-lo assistido. Sem qualquer tipo de recomendação, numa daquelas tardes em que o desejo de ir ao cinema precede a escolha do filme, corri os olhos pelas sinopses e acabei me decidindo por ele. Dirigido por Carla Simón, o longa-metragem chegou a figurar na lista de candidatos a uma indicação ao Oscar 2018 na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, mas não foi escolhido. Além disso, Verão 1993 teve uma breve passagem pelo circuito comercial em dezembro de 2017 sem grande repercussão. Desde lá não encontrei mais de duas pessoas que o tivessem visto.
O filme conta a história de Frida (Laia Artigas), uma menina de seis anos que acaba de perder a mãe por complicações do vírus da AIDS e cujo pai também já era falecido. Foi desejo da mãe que, após sua morte, Frida fosse morar com o tio Esteve (David Verdaguer) e sua esposa Marga (Bruna Cusi), em vez de ficar com os avós maternos. Diante disso, Frida se muda para uma cidade no campo, onde vivem o tio, sua esposa e uma filha de quatro anos de idade, Anna (Etna Campillo). No decorrer do filme, Frida lidará com a perda da mãe e outras perdas subjacentes a esta, ao mesmo tempo em que precisa encontrar um lugar dentro da nova família.
Se de início somos capturados pela dimensão da perda com que a protagonista se vê confrontada por sua condição de criança. No decorrer da trama, nos surpreendemos com a maneira com que ela elabora o luto. A história se desenrola na medida em que Frida formula perguntas que lhe permitem construir um conhecimento de mundo sobre a experiência que está vivendo. Perguntas estas precariamente respondidas pelos adultos, pois evitam falar sobre a morte de sua mãe. Por um lado, os avós parecem ocupados em dedicar a ela um excesso de mimos na tentativa de poupá-la do sofrimento. Os tios, por outro, estão ocupados em integrá-la à família e dar conta dos impasses que isso representa em suas vidas.
Um olhar atento sobre o filme nos permite perceber que o enredo, assim como as técnicas cinematográficas que o estruturam, busca capturar a elaboração do luto de uma criança de forma muito espontânea, valendo-se para isso do recurso da câmera subjetiva[1]. O longa-metragem também parece dar relevo ao contraste entre como o luto é vivenciado pela menina e como este mesmo processo é elaborado pelos adultos que a rodeiam.
Frida (Laia Artigas)
O trabalho de elaboração do luto de Frida passa por questionamentos em relação ao seu vínculo com a mãe. “Minha mãe me amava”? “Eu era importante para ela”? São perguntas que, se não formuladas desta maneira, estão presentes nas atitudes de Frida. Para viver o luto, ela antes terá que se certificar do lugar que ocupava no desejo da mãe, e, a partir disso, seu lugar na nova família.
Tal foco no objeto perdido é um dos elementos que constituem o trabalho do luto. Em Luto e Melancolia, Freud (2011) nos lembra de que este é um processo que demanda tempo, pois as lembranças e expectativas ligadas ao objeto precisam ser uma a uma focalizadas e investidas para posteriormente serem desinvestidas, liberando o ego para novas ligações. Também Lacan (2016) se refere ao trabalho de luto como uma desobstrução das vias desejantes, que somente poderão retornar seu curso depois de concluído.
Na cena em que a família está reunida à mesa, inicia-se uma conversa em que a avó se mostra contrariada por não ter ficado com a guarda da menina. Neste momento, tia Lola (Montse Sanz) lembra que a irmã havia deixado claro na carta o que desejava. Frida que ouve a conversa, logo pergunta: “Que carta? O que estava escrito na carta?”. Os adultos procuram distraí-la e mudam de assunto.
A meu ver, o real destinatário da carta é Frida. Ainda que contivesse como enunciado o desejo da mãe de que sua filha ficasse com os tios e não com os avós; traz como enunciação, uma mensagem dirigida à filha. Talvez ela quisesse dizer que, por lhe amar é que escolheu as pessoas que cuidariam de Frida tão bem quanto ela, se pudesse.
A interação entre as duas crianças, Frida e sua prima Anna, é digna de nota. O recurso de câmera subjetiva capta isso de forma magnifica numa cena de brincadeira entre elas. Nesta, Frida se veste e se maquia como se fosse uma adulta. Ela representa uma mãe, inclusive faz de conta que está fumando, provavelmente, como sua própria mãe fazia. Anna, por sua vez, representa a filha. Na brincadeira, Anna pede à Frida que brinque com ela. Inicialmente, Frida reluta dizendo que está se sentindo muito cansada – possível menção ao estado debilitado da mãe de Frida, devido à doença -, mas, ao final, aceita, dizendo: “Te amo tanto tanto que não posso dizer não”. Combinam de brincar de cozinheira. Frida fica sentada enquanto Anna lhe serve as comidinhas. A cena se repete algumas vezes, até que Frida diz que não pode mais brincar, pois está muito cansada.
Nessa brincadeira podemos perceber o paralelismo entre Frida e sua mãe. A mãe, no faz de conta, está muito cansada, mas mesmo assim aceita brincar porque ama muito a filha. É curioso perceber que nesta situação acontece a identificação de Frida com a mãe quando ela assume seu lugar na brincadeira, mas também o lugar de filha, representado por Anna. Afinal, é Anna que ocupa o lugar que ela perdeu na configuração familiar. Isto fica evidente em outras cenas, nas quais Frida observa minunciosamente os tios – Esteve e Marga – cuidando de Anna.
Anna (Etna Campillo) e Frida (Laia Artigas)
Em outros momentos percebemos Frida às voltas com a ideia da morte. Por meio de questionamentos, observações ou mesmo flertes, ela busca construir uma teoria sobre isso, como é comum às crianças. Freud (2010) observa que as crianças tendem a falar sobre a morte de forma mais aberta e sem constrangimentos, visando encontrar um sentido para ela. Enquanto os adultos se mostram mais relutantes ao se referirem ao assunto. Ainda em relação a isso, Freud toma como exemplo a seguinte frase dita por uma criança: “Querida mamãe, quando você morrer, vou fazer isso e aquilo.”.
Neste sentido, o sangue é um elemento central na busca de Frida pela compreensão da morte. Em vários momentos do filme, a protagonista, quando diante dele, parece procurar um elo entre o sangue e morte.
Numa das cenas em que isso aparece, Frida machuca o joelho enquanto brinca. Ao vê-la ferida, outra criança tenta ampará-la, mas é impedida por sua mãe que teme o contato da filha com o sangue de Frida. Depois disso, enquanto Marga faz um curativo no corte, Frida passa os dedos no próprio sangue e fica observando, como quem busca uma explicação para a cena que acabara de acontecer – o que haveria naquele sangue que ela desconhecia?
Vale ressaltar que Frida adquiriu o vírus da AIDS da mãe durante sua gestação e, por isso se submeteu, reiteradas vezes, a exames de sangue para acompanhamento da carga viral. Daí, podemos inferir que essa situação acontecia numa atmosfera em que a doença não era um assunto tratado abertamente. A história se passa em 1993, momento em que a AIDS ainda era vista com uma carga de tabu maior da que existe hoje. Isso nos leva a pensar que o sangue ao mesmo tempo em que a liga à mãe pelo lado da vida, também a liga pelo lado da morte.
No decorrer da história percebemos que vai se construindo um vínculo entre Frida e a nova família, ainda que não sem percalços. Afinal, para os tios, mais do que o aceite da missão que lhes delegou a mãe de Frida, foi necessário que eles reconhecessem como deles o desejo de adotá-la.
Frida por sua vez vai se assegurando desse lugar e passa a se referir a sua mãe, como a “mãe de antes”. O lugar vazio deixado pelo objeto que não existe mais passa a ser simbolizado como a “mãe de antes”, que por sua vez, abre-se para o desejo de ser filha de Marga, a quem passa a chamar de mãe.
Verão 1993 evoca a resiliência da criança para lidar com situações desafiadoras, desde que, para isso haja um suporte favorável do ambiente em que esteja inserida. No caminho percorrido por Frida para elaborar o luto pela morte de sua mãe, vemos o quanto este é um processo que demanda tempo e investimento psíquico. Tempo que muitas vezes tentamos abreviar em nome do imperativo de felicidade a que nos vemos submetidos nos dias de hoje. Resta saber o preço que pagamos por isso.
[1] A câmera subjetiva assume um dos personagens, passando a comportar-se segundo seu ponto de vista e de seus movimentos.
Verão 1993 (Estiu 1993, título original), Espanha, 2017, dirigido por Carla Simón.
Publicado anteriormente na Revista Deriva.
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